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Tradição Huni-Kuin

SABEDORIA DO POVO HUNI KUIN

Os Huni-Kuin habitam a fronteira brasileira-peruana na Amazônia ocidental. As aldeias Huni-Kuin no Peru se encontram nos rios Purus e Curanja. As aldeias no Brasil (no estado do Acre) se espalham pelos rios Tarauacá, Jordão, Breu, Muru, Envira, Humaitá e Purus. Cada um deles se autodenomina huni kuin, homens verdadeiros, ou gente com costumes conhecidos.

No povo Huni-Kuin, tradicionalmente, há uma organização social que gira em torno de grupos de famílias extensas, com destaque a duas figuras: a liderança e o pajé. A liderança porque tem um poder político de arregimentar a comunidade em torno dos interesse da coletividade, e o pajé porque tem o poder espiritual, da cura, de fazer e desfazer feitiços, o poder mágico-religioso.

Embora os pajés tenham sido uma das figuras mais atingidas das sociedades indígenas durante o processo de colonização da Amazônia, a sociedade Huni Kuin ainda os mantém como elemento significativo em sua cultura. Os colonizadores sabiam que extinguindo o poder mágico-religioso e político das sociedades indígenas, minava-se a base da organização social das populações nativas. Todavia, os Huni Kuins resistiram. Mesmo vivendo em uma correlação desfavorável de forças com a sociedade envolvente, sendo vítimas de discriminação e preconceitos, ainda assim mantêm vivos aspectos essenciais de suas tradições, como por exemplo, o ritual tradicional da cultura Huni Kuin, a tradição espiritual propicia a ligação das pessoas com o Yuxin, que está fora da natureza e fora do humano, é o sobrenatural e o sobre-humano. Através dos poderes do pajé, que vão desde conhecimentos para curar doenças até o contato com o lado espiritual da realidade se estabelece a ligação dos Huni Kuin.

Os Huni-Kuin afirmam que os verdadeiros xamãs, os mukaya, aqueles que tinham dentro de si a substância amarga e xamânica chamada muka, morreram, mas este fato não os impede de praticar outras formas de xamanismo, consideradas menos poderosas mas que parecem igualmente eficientes. Somente a retirada do duri, equivalente do muka, entre os Kulina, parece ter sido o privilègio do mukaya. Outras capacidades, como a de saber se comunicar com os yuxin, são do domínio de muitos adultos, especialmente os mais velhos.

Dessa maneira poderíamos tanto dizer que não existem xamãs quanto dizer que existem muitos. Uma característica saliente do xamanismo Huni-Kuin é a importância da discrição com relação à possível capacidade de curar ou causar doença. A invisibilidade e ambiguidade deste poder é ligada a sua transitoriedade. Sugiro portanto que a afirmação de que não se tem mais xamãs tão poderosos quanto antigamente seja interpretada à luz de uma desenfatização da figura do xamã. Xamanismo é mais um evento do que um papel ou uma instituição cristalizada. Este fato se deve também às severas regras de abstinência que incidem sobre a prática do xamã na sua forma de mukaya, que não podia comer carne nem ter contato com mulheres.

O uso da ayahuasca, considerado privilégio do xamã em muitos grupos amazônicos, é uma prática coletiva entre os Huni-Kuin, praticada por todos os homens e mulheres adultas, e adolescentes que desejam ver “o mundo do cipó”. O mukaya seria aquele que não precisa de nenhuma substância, nenhuma ajuda exterior para se comunicar com o lado invisível da realidade. Mas todos os homens e mulheres adultas são um pouco xamãs na medida que aprendem a controlar suas visões e interações com o mundo dos yuxin.

Dois fatos facilmente observáveis que apontam nessa direção são o uso frequente e público da ayahauasca (aproximadamente duas ou três vezes por mês) e as longas caminhadas solitárias de alguns velhos sem o objetivo de caçar ou de buscar ervas medicinais (explicação geralmente dada). Estas duas atividades mostram uma procura ativa de estabelecer um contato intenso com a yuxindade.

Yunxidade é uma categoria que sintetiza bem a cosmovisão xamânica dos Huni Kuin, uma visão que não considera o espiritual (yuxin) como algo sobrenatural e sobre-humano, localizado fora da natureza e fora do humano. O espiritual ou a força vital (yuxin) permeia todo o fenômeno vivo na terra, nas águas e nos céus.

Na vida diária vemos um lado da realidade onde este parentesco universal das coisas vivas não se revela: vemos corpos e sua utilidade imediata. Em estados alterados de consciência, porém, o homem se defronta com o outro lado da realidade, em que a espiritualidade que habita certas plantas ou animais se revela como yuxin, huni kuin, “gente nossa”. Por se manifestar tanto como força vital quanto como alma ou espírito com vontade e personalidade próprias, nenhum termo capta bem este caráter efêmero e polivalente do yuxin.

Na região do Purus, os próprios Huni Kuin traduzem yuxin por alma (encantados) quando se referem aos yuxin que aparecem de noite ou no crepúsculo da mata em forma humana. O uso desta palavra vem da convivência com os seringueiros, que também vêem e falam de almas. Uma tradução usada pelos Huni Kuin é “encantado”.

A atividade do xamã que procura conhecer e relacionar-se com os yuxin é indispensável para o bem estar da comunidade. A causa última de todo mal-estar, doença ou crise tem suas raízes neste lado yuxin da realidade, em que o xamã, como mediador entre os dois lados, é necessário. O xamã trabalha com o que tem de yuxin no mundo, com a categoria que chamo de yuxindade. Os lugares com maior concentração de yuxin são os barrancos (onde moram os mawam yuxibu, identificados pelo lugar onde moram), o lago e as árvores.

Para os Huni-Kuin, a pessoa é formada por carne (ou corpo) e yuxin. Os animais têm um lado corporal e um lado yuxin, assim como as plantas. Entre os animais há aqueles com yuxin forte e perigoso, e outros com yuxin de poder negligenciável. A qualidade do yuxin do animal influencia o regime e os tabus alimentícios dos seres humanos. Os yuxin das plantas geralmente não são nocivos ou perigosos. Em muitos jejuns banana e amendoim, por exemplo, são permitidos, apesar dos yuxin destas plantas serem mencionados regularmente como fazendo parte das almas que aparecem na aldeia a pedido do xamã para curar. Dentro de toda essa ambigüidade, os yuxin podem aparecer “como gente mesmo”, huni kuin, assim como na forma de certos animais.

Os Huni-Kuin habitam a fronteira brasileira-peruana na Amazônia ocidental. As aldeias Huni-Kuin no Peru se encontram nos rios Purus e Curanja. As aldeias no Brasil (no estado do Acre) se espalham pelos rios Tarauacá, Jordão, Breu, Muru, Envira, Humaitá e Purus. Cada um deles se autodenomina huni kuin, homens verdadeiros, ou gente com costumes conhecidos.

No povo Huni-Kuin, tradicionalmente, há uma organização social que gira em torno de grupos de famílias extensas, com destaque a duas figuras: a liderança e o pajé. A liderança porque tem um poder político de arregimentar a comunidade em torno dos interesse da coletividade, e o pajé porque tem o poder espiritual, da cura, de fazer e desfazer feitiços, o poder mágico-religioso.

Embora os pajés tenham sido uma das figuras mais atingidas das sociedades indígenas durante o processo de colonização da Amazônia, a sociedade Huni Kuin ainda os mantém como elemento significativo em sua cultura. Os colonizadores sabiam que extinguindo o poder mágico-religioso e político das sociedades indígenas, minava-se a base da organização social das populações nativas. Todavia, os Huni Kuins resistiram. Mesmo vivendo em uma correlação desfavorável de forças com a sociedade envolvente, sendo vítimas de discriminação e preconceitos, ainda assim mantêm vivos aspectos essenciais de suas tradições, como por exemplo, o ritual tradicional da cultura Huni Kuin, a tradição espiritual propicia a ligação das pessoas com o Yuxin, que está fora da natureza e fora do humano, é o sobrenatural e o sobre-humano. Através dos poderes do pajé, que vão desde conhecimentos para curar doenças até o contato com o lado espiritual da realidade se estabelece a ligação dos Huni Kuin.

Os Huni-Kuin afirmam que os verdadeiros xamãs, os mukaya, aqueles que tinham dentro de si a substância amarga e xamânica chamada muka, morreram, mas este fato não os impede de praticar outras formas de xamanismo, consideradas menos poderosas mas que parecem igualmente eficientes. Somente a retirada do duri, equivalente do muka, entre os Kulina, parece ter sido o privilègio do mukaya. Outras capacidades, como a de saber se comunicar com os yuxin, são do domínio de muitos adultos, especialmente os mais velhos.

Dessa maneira poderíamos tanto dizer que não existem xamãs quanto dizer que existem muitos. Uma característica saliente do xamanismo Huni-Kuin é a importância da discrição com relação à possível capacidade de curar ou causar doença. A invisibilidade e ambiguidade deste poder é ligada a sua transitoriedade. Sugiro portanto que a afirmação de que não se tem mais xamãs tão poderosos quanto antigamente seja interpretada à luz de uma desenfatização da figura do xamã. Xamanismo é mais um evento do que um papel ou uma instituição cristalizada. Este fato se deve também às severas regras de abstinência que incidem sobre a prática do xamã na sua forma de mukaya, que não podia comer carne nem ter contato com mulheres.

O uso da ayahuasca, considerado privilégio do xamã em muitos grupos amazônicos, é uma prática coletiva entre os Huni-Kuin, praticada por todos os homens e mulheres adultas, e adolescentes que desejam ver “o mundo do cipó”. O mukaya seria aquele que não precisa de nenhuma substância, nenhuma ajuda exterior para se comunicar com o lado invisível da realidade. Mas todos os homens e mulheres adultas são um pouco xamãs na medida que aprendem a controlar suas visões e interações com o mundo dos yuxin.

Dois fatos facilmente observáveis que apontam nessa direção são o uso frequente e público da ayahauasca (aproximadamente duas ou três vezes por mês) e as longas caminhadas solitárias de alguns velhos sem o objetivo de caçar ou de buscar ervas medicinais (explicação geralmente dada). Estas duas atividades mostram uma procura ativa de estabelecer um contato intenso com a yuxindade.

Yunxidade é uma categoria que sintetiza bem a cosmovisão xamânica dos Huni Kuin, uma visão que não considera o espiritual (yuxin) como algo sobrenatural e sobre-humano, localizado fora da natureza e fora do humano. O espiritual ou a força vital (yuxin) permeia todo o fenômeno vivo na terra, nas águas e nos céus.

Na vida diária vemos um lado da realidade onde este parentesco universal das coisas vivas não se revela: vemos corpos e sua utilidade imediata. Em estados alterados de consciência, porém, o homem se defronta com o outro lado da realidade, em que a espiritualidade que habita certas plantas ou animais se revela como yuxin, huni kuin, “gente nossa”. Por se manifestar tanto como força vital quanto como alma ou espírito com vontade e personalidade próprias, nenhum termo capta bem este caráter efêmero e polivalente do yuxin.

Na região do Purus, os próprios Huni Kuin traduzem yuxin por alma (encantados) quando se referem aos yuxin que aparecem de noite ou no crepúsculo da mata em forma humana. O uso desta palavra vem da convivência com os seringueiros, que também vêem e falam de almas. Uma tradução usada pelos Huni Kuin é “encantado”.

A atividade do xamã que procura conhecer e relacionar-se com os yuxin é indispensável para o bem estar da comunidade. A causa última de todo mal-estar, doença ou crise tem suas raízes neste lado yuxin da realidade, em que o xamã, como mediador entre os dois lados, é necessário. O xamã trabalha com o que tem de yuxin no mundo, com a categoria que chamo de yuxindade. Os lugares com maior concentração de yuxin são os barrancos (onde moram os mawam yuxibu, identificados pelo lugar onde moram), o lago e as árvores.

Para os Huni-Kuin, a pessoa é formada por carne (ou corpo) e yuxin. Os animais têm um lado corporal e um lado yuxin, assim como as plantas. Entre os animais há aqueles com yuxin forte e perigoso, e outros com yuxin de poder negligenciável. A qualidade do yuxin do animal influencia o regime e os tabus alimentícios dos seres humanos. Os yuxin das plantas geralmente não são nocivos ou perigosos. Em muitos jejuns banana e amendoim, por exemplo, são permitidos, apesar dos yuxin destas plantas serem mencionados regularmente como fazendo parte das almas que aparecem na aldeia a pedido do xamã para curar. Dentro de toda essa ambigüidade, os yuxin podem aparecer “como gente mesmo”, huni kuin, assim como na forma de certos animais.

Muka: o poder dos yuxin e do xamã

O poder dos yuxin, que se revela por sua capacidade de transformação, é chamado muka. Muka é uma qualidade xamânica, às vezes concretizada como substância. O ser com muka tem o poder espiritual de matar e curar sem usar força física ou veneno (remédio: dau). O ser humano pode receber muka dos yuxin, o que lhe abre o caminho para se tornar xamã, pajé, mukaya. Mukaya significa homem com muka, ou na tradução ‘‘pego pelo amargo’’. O xamã tem um papel ativo no processo de acumulação de poder e conhecimento espiritual, mas sua iniciação acontecerá somente a partir da iniciativa dos yuxin. Se os yuxin não o escolhem, não o pegam, pouco adiantam seus passeios solitários na mata. Uma vez pego porém, o aprendiz torna-se doente nos olhos dos humanos (“ficam doidos quando chega mulher perto”). O ponto fraco do yuxin é o corpo, o do homem é seu yuxin; a “yuxindade” ameaça o corpo do homem, e o corpo, o sangue (feminino) ameaça a cabeça dos yuxin. Se o homem que foi pego quiser seguir o caminho de mukaya, ele se submete a jejuns prolongados e severos (sama) e procura outro mukaya para instruí-lo.

Outra característica do xamanismo Huni-Kuin, expressa pelo nome mukaya, está na oposição entre o amargo (muka) e o doce (bata). Os Huni-Kuin distinguem dois tipos de remédio (dau): os remédios doces (dau bata) são folhas da mata, certas secreções e animais e os adornos corporais; os remédios amargos (dau muka) são os poderes invisíveis dos espíritos e do mukaya.

A especialidade de huni dauya (homem com remédio doce, ervatário) normalmente não se combina com a de huni mukaya (xamã). O processo de aprendizagem do ervatário é bem diferente do xamã. Se não lidar com folhas venenosas o ervatário não é sujeito a jejuns e pode desenvolver suas atividades normais de caça e vida conjugal. Ele adquire seu conhecimento através da aprendizagem com o outro especialista e precisa de uma memória e percepção agudas.

O Pajé (Xamã)

O xamã é temido por sua capacidade de causar doença e morte sem fazer nada fisicamente. Pode atirar seu muka (que é invisível quando atirado) na vítima a partir de grandes distâncias; ou pode convencer algum dos yuxin com quem está familiarizado a matar uma pessoa.

Quanto maior o número de yuxin aliados do mukaya, maior será o seu poder. Porque seu poder de cura reside, de um lado, na sua capacidade de negociação como agente ativo da cura (quando vai buscar o espírito perdido de seu paciente que se juntou aos yuxin), e de outro, na qualidade e quantidade de yuxin que pode convocar para uma sessão de cura, onde serão os yuxin (seus amigos) os agentes da cura, trabalhando através (ou reunidos ao redor) do corpo do xamã.

Mesmo assim, a viagem xamânica continua sendo, no entanto, uma característica crucial do xamanismo Huni-Kuin. O bedu yuxin viaja, livre do corpo, no sonho, ou quando o xamã está em transe sob o efeito do rapé ou do ayahuasca. Estas viagens cumprem objetivos além da cura de um caso concreto. São excursões exploratórias. Procuram entender o mundo e as causas últimas das doenças. Exploram os caminhos que o bedu yuxin do morto terá que seguir para chegar ao céu e fortalecem as relações com o mundo espiritual pelo bem-estar da comunidade.

Existem alguns tipos de doença: uma material (veneno) e outra espiritual (poder). A doença causada por veneno, é por conta do dauya (ervatário), e a doença provocada pelo poder espiritual (muka), tem um mukaya (xamã) inimigo culpado. Existe um terceiro tipo: a doença causada pelos yuxin, que é a perda pelo paciente de seu bedu yuxin. A doença causada pelos yuxin a pedido de um mukaya também significa perda: do xamã pode-se roubar seu muka, de um ser comum sua alma.

Os dois tipos de doenças causadas por homens têm tratamentos diferenciados. O veneno provoca uma perda de líquidos e forças vitais (o paciente vomita, tem diarréias, fica anêmico). Neste caso, o xamã cura com sua força: cheira um tipo de rapé preparado especialmente para a cura e sopra sobre o paciente. No caso da causa ser o muka, o problema não é a perda, mas a presença de uma força negativa que toma a forma de um corpo estranho que age e destrói o corpo por dentro. Doenças provocadas por muka são dores agudas no fígado, no estômago ou no coração (três órgãos importantes na visão kaxinawá do corpo humano). Nesta fase, ainda tem cura. O xamã chupa o local da dor para tirar o objeto intruso. Chupa, tira o muka que o xamã inimigo mandou para o paciente.

A pessoa Humana para os Kaxinawá é concebida por três partes: o corpo ou a carne (yuda), o espírito do corpo ou a sombra (yuda baka yuxin) e o espírito do olho (bedu yuxin). A carne ou qualquer corpo vivo transforma-se em pó quando seu aspecto yuxin lhe é tirado.

Mitos

A maior parte dos mitos de origem, são ligados a um bem cultural (o roubo do fogo, a tecelagem, o desenho, a cerâmica, o plantio etc.) contam como este bem, ou a arte de produzi-lo, foi dado aos humanos por um animal. Mas não era um animal qualquer. Este animal “é huni kuin encantado”. Sendo assim, o yuxin que estava nesse animal comunicou aos homens suas qualidades. Não por acaso, foi o esquilo que ensinou ao homem a arte de plantar (sabemos que o esquilo se caracteriza por guardar, estocar comida durante muito tempo, o que é necessário para plantar). O macaco prego ensinou o ser humano a copular. Este macaco adota uma posição face a face no coito, uma posição excepcional entre os animais. Quando se tratou de “traduzir” este hábito animal em comportamento humano, os yuxin transformaram-se em gente para a percepção humana. Desta maneira viveram durante algum tempo entre os homens, sob forma humana, a rata parteira (xuya), a aranha tecelã (Baxem pudu) e outros.

Arte

Kene Kuin, desenho verdadeiro, é uma marca importante da identidade Huni-Kuin. O corpo e o rosto são pintados com jenipapo por ocasião de festas, quando há visitas ou pelo simples prazer de se arrumar. Crianças muito pequenas não recebem desenho, mas são enegrecidas dos pés à cabeça com jenipapo. Meninos e meninas têm só uma parte do rosto coberto com desenho e os adultos têm o rosto todo pintado.

A pintura com jenipapo é uma atividade exclusivamente feminina. Em dias sem festa muitos andam sem desenho, mas quando um dos homens da casa traz jenipapo da mata, sempre há alguém que se anima a preparar tinta e chamar os outros para pintá-los. As pessoas que mais andam pintadas são as mulheres jovens; os homens menos, a não ser que sejam hóspedes.

O estilo do kene kuin contém uma variedade de motivos que têm nomes. Quando um motivo tem dois ou mais nomes, isto geralmente se deve à ambigüidade, típica do estilo Huni-Kuin, entre fundo e figura. Os mesmos motivos, ou desenhos básicos, usados na pintura facial, são encontrados na pintura corporal, na cerâmica, na tecelagem, na cestaria e na pintura dos banquinhos.

Assim como nem sempre e nem todos os corpos são pintados, também nem todos os objetos keneya têm desenho. Panelas para cozinhar comida não são pintadas, mas pratos para servir comida podem sê-lo. A pintura é associada a uma fase de novidade na vida do objeto ou da pessoa, uma fase na qual é desejável enfatizar a superfície lisa e perfeita do corpo em questão. O desenho chama a atenção para as novidades na experiência visual, que anunciam eventos cruciais da vida. O desenho desaparece com o uso e só é refeito por ocasião de uma festa. Assim, coisas com o desenho ocupam um lugar especial na cultura Huni-Kuin, como em outras culturas do ocidente amazônico.

Para os Huni Kuin a terra é de uso coletivo; as famílias, chefiadas pelos homens fazem seus roçados, utilizando os espaços disponíveis para o plantio de forma que toda a comunidade possa utilizá-los. Os trabalhos na aldeia são divididos por sexo e por idade. Há atividades realizadas somente por mulheres, outras exclusivamente por homens, algumas reservadas para os mais jovens, mas há também trabalhos que podem ser realizados por qualquer pessoa da comunidade, de ambos os sexos e de qualquer faixa etária.

Os Huni Kuins possuem uma vasta cultura material, que vai desde a tecelagem em algodão, com tingimento natural, até a cerâmica feita em argila com cinzas obtidas de animais, árvores e ainda cacos de outras cerâmicas, onde são impressos os kenês, uma espécie de marca que identifica a cultura material dos Huni Kuins, cujo significado está relacionado à coragem, força, poder e sabedoria. O artesanato se configura como uma das principais fontes de renda das famílias Huni Kuins, devido ao seu belo design tem uma grande aceitação no mercado regional e até mesmo nacional.

O mito do nixi pae

Relata o mito que tudo aconteceu em uma aldeia do povo Huni Kuin (que na língua hantxa kuin, da família linguística pano, significa “gente verdadeira”), também denominado Kaxinawá. Foi nessa aldeia, às margens do Rio Jordão, no atual estado do Acre e território fronteiriço com o Peru, que surgiu há alguns milhares de anos o nixi pae (“cipó forte”), mais conhecido como ayahuasca (em idioma de origem quéchua), a medicina de cura de uso xamânico entre muitos povos ameríndios.

Conta o mito Yube Inu Dua Busë que o ensinamento de como preparar o nixi pae veio do fundo de um lago, das mãos de um povo-jiboia e de uma encantadora mulher-jiboia, que levou um caçador Huni Kuin chamado Dua Busë pra viver com ela debaixo d’água. A história é cantada em rituais e recontada em pinturas, ou“telas-cantos”, como define o antropólogo e curador Daniel Dinato, traduções visuais dos huni mekas, os cânticos sagrados que conduzem os rituais com o cipó forte.

A tela Yube Inu, Yube Shanu (2021), do Movimento dos Artistas Huni Kuin (Makhu), narra com imagens o mito do surgimento do nixi pae. A obra foi apresentada em junho, na exposição Tudo É Perigoso, Tudo É Divino, Maravilhoso, com curadoria de Daniel Dinato, no espaço da Carmo Johnson Projects, em São Paulo. A história começa a ser contada no canto superior direito do quadro, onde um indígena descansa em sua rede. O acontecimento disparador da experiência iniciatória – o fascínio pela mulher-jiboia que copula com uma anta e depois o atrai para o fundo do rio – se dá no centro da pintura, ao lado de uma grande árvore envolvida por uma enorme jiboia.

Em todas a telas-cantos do Mahku, os acontecimentos parecem se dar concomitantemente. Não há, na estrutura do quadro, evidências visuais de ordem cronológica ou qualquer menção à linearidade. Mas isso não necessariamente se relaciona a uma concepção de temporalidades sobrepostas. “Isso tem relação com o fato de a ayahuasca abrir espaço para aquilo que chamamos de sinestesia”. “Acredito que os múltiplos estímulos sensoriais auxiliam a produzir uma espécie de colagem visual, com inúmeras imagens e pequenas narrativas simultâneas, um todo sem começo, meio e fim lineares.”

A série recente de pinturas produzida para a mostra apresenta outros huni mekas e detalhes do mito. Todas fazem uso abundante de grafismos, chamados kene, presentes na pintura corporal, roupas e adereços Huni Kuin. O corpo da jiboia é também presença constante, deslocando-se sinuosamente pelas regiões da tela, conectando trechos das histórias e, por vezes, emoldurando as cenas. “Acredito que o principal papel da jiboia é o da transformação”, continua Dinato. “Transformar-se para adaptar-se, viajar entre-mundos e comunicar esses distintos mundos. Nesse sentido, Makhu é Yube, a jiboia mítica, pois constrói caminhos, pontes e se desloca entre-mundos: o mundo dos ‘espíritos’ yuxin, dos Huni Kuin e dos não indígenas. As pinturas do Makhu são a ponta do iceberg de outra ontologia.”

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